domingo, 28 de abril de 2013

A Estereoscopia



...The impression of three-dimensional
solidity became greater as the optic
 axes of each eye diverges (Crary, 1988. 24).


Referenciada pela 1ª vez em 1838[1] e inventada pelo professor Charles Wheatstone, a estereoscopia permite ver as superfícies das imagens com profundidade, “[cria] um certo efeito de profundidade; mas com este instrumento esse efeito é potenciado de forma a produzir um efeito de realidade que ilude os nossos sentidos com a sua aparência de verdade” (Holmes, 1859: 06).
A estereoscopia é uma forma de adequar uma imagem ao modo de ver  humano, com capacidade para tornar as imagens mais próximas da realidade. Apesar de fazer uso das imagens fotográficas, a sua invenção é precedente à fotografia e, tal como noutros casos, o seu aparecimento originou uma reorganização do espaço e da mentalidade do observador num contexto de adaptação à novidade que era o facto de não apresentar imagens em movimento.
Na sua designação original, stereopsis, há uma derivação das palavras gregas stereós, que quer dizer sólido, e opsis, que quer dizer visão. Assim, estamos a falar de um ver de uma forma encorpada, de um ver sólido ou de uma visão compacta. De uma forma de tornar as imagens mais próximas de uma realidade que penetra no interior do olhar. Os pilares fundadores da estereoscopia estão no estudo da fisiologia ocular do século XIX, particularmente nos conhecimentos obtidos sobre a disparidade binocular[2], enquanto elemento sintetizador de uma imagem única .
Para além dos contributos iniciais de Charles Wheatstone, a história da estereoscopia tem origem nos anos 20 e 30 do século XIX, devido aos conhecimentos adquiridos sobre  a visão subjectiva e aos avanços da psicologia. Estes avanços criaram alicerces para o desenvolvimento do pensamento sobre a ilusão óptica[3] e a teoria da cor[4]. Para além disso, a estereoscopia recebeu contributos vários como a construção em 1849 de uma versão mais prática do estereoscópio, feita David Brewster (figura 1) ou o aparecimento em França, em 1850, do primeiro produtor de fotografias[5] para estereoscópios, Jules Duboscq.

Figura 1 – Estereoscópio construído por David Brewster

O impacto da estereoscopia junto do público foi de grande afirmação. Para isso, contribuíram as grandes exposições mundiais de 1851, em Londres, e 4 anos depois em Paris[6]. Se exceptuarmos a fotografia, a estereoscopia foi uma das mais significativa formas de fixar imagens durante o século XIX.
A profundidade sentida através do olhar, é um treino apreendido não só pela visão, mas também por outros sentidos. A sua percepção é uma educação e, por isso, Rudolf Arnheim (1960) fala da profundidade como uma habilidade humana capaz de efectuar uma interpretação do mundo. A profundidade relaciona-se com o espaço tridimensional e permite estimar com maior precisão a distância até um determinado objecto. A percepção do espaço enquanto matéria de estudo originou acesos debates: “Was space an innate form, or was it something recognized through the learning of cues after birth?” (Crary, 1988. 24).  A questão base era perceber como ocorre a percepção sensorial na sua passagem de um domínio para outro? Ou como podem os sentidos se reunir num acto de percepção? Molyneaux[7], numa visão céptica e prudente, considerava, na resposta às questões anteriores, o seguinte pensamento: na restituição da visão a um individuo cego, não se verificava o reconhecimento de objectos por parte de quem nunca os tinha visto[8]. O caminho que se seguiu apoiou-se sempre numa insistência de crescimento da ideia de relação entre a visão e um lado táctil dos sentidos.  É impossível negar a capacidade de identificar a solidez de um objecto com um só olho, mas é muito mais fácil, e eficaz, fazê-lo com os dois olhos – que são dois pontos de vista separados alguns centímetros entre eles – “Embora como vimos, os dois olhos vejam duas imagens diferentes, nós vemos apenas uma imagem. Os dois caminham em conjunto e reúnem-se num terceiro, que nos mostra tudo o que veríamos em cada um” (Holmes, 1859: 07). Isto é o que acontece na normalidade do olhar e da visão e na comunicação com o sistema neuronal e cerebral. Dependendo de indivíduo para indivíduo, os olhos estão separados entre eles entre 50 a 75 mm[9]. Cada olho tem uma visão daquilo que é visto. No mesmo espaço de visão, o olho direito vê uma imagem, que vamos identificar como X1, e o olho esquerdo vê uma outra imagem, que identificamos por X2. Para perceber este ‘acontecimento’, basta fazer o ‘curioso’ exercício de abrir e fechar os olhos alternadamente e sentir a disparidade binocular. Com este exercício reparamos que os objectos situados à nossa frente parecem dar pequenos saltos que alteram a sua posição. Na verdade quem salta é o observador porque através da alternância de olhar com um olho ou outro, a posição do observador em relação ao objecto, altera-se. Com este exercício, o observador vê alternadamente aquilo que parece ser a mesma imagem com um olho e com outro. Em resultado, ora vê a imagem x1, ora vê a imagem x2.
A linha de visão dos olhos, fixa um ponto no espaço. Esse ponto projecta uma determinada localização na retina dos dois olhos. A visão binocular é definida pela diferença entre o ponto de projecção nos dois olhos – ângulo de visão. A figura 2 representa a visão binocular.

Figura 2 – Visão binocular

A disparidade binocular era conhecida desde a antiguidade. Nos anos 30 do século XIX, tornou-se um conhecimento crucial para novos desenvolvimentos ma área. O propósito dos investigadores era: “given that an observer perceives with each eye a different image, how are they experienced as a single or unitary” (Crary, 1988. 25). O seu trabalho tinha duas possíveis respostas: i) nunca se vê nada excepto com um olho de cada vez; ii) com base no trabalho de Kepler, cada olho projecta um objecto contextualizado na sua actual localização.
A visão humana percebe todas as dimensões de um objecto e não apenas a sua superfície. Na visão subjectiva, que apenas é experenciável através das condições de percepção, está o princípio do instrumento que é a estereoscopia, que assenta num princípio de disparidade binocular, i.e. dá-se a criação de uma percepção de profundidade sempre que um determinado objecto ou paisagem é vista por ambos os olhos através de uma visão binocular normal. Os fisiologistas dos anos 20 do século XIX, descobriram uma zona por de trás dos olhos com fibras nervosas da retina com ligação ao cérebro e com a função de transportar a informação e cruzando com os dois lados do cérebro. Os avanços destes estudos concluíram que a disparidade retinal produz uma só imagem: “the human organism, he claimed, had the capacity under most conditions to synthesize retinal disparity into a single unitary image” (Crary, 1988. 27).
De uma forma muito simples, o sistema aqui apresentado pode ser explicado da seguinte forma:
1º. Uma imagem, como se fosse a visão do olho direito, é vista pelo olho direito;
2ª. Igual ao ponto anterior mas para o olho esquerdo;
3º. Junção das duas imagens.
As pesquisas de Wheatstone foram as mais importantes para se obter esta informação: “His research concerned the visual experience of objects relatively close to the eye” (Crary, 1988. 27). Quando os objectos a observar estão mais próximos dos olhos, os valores dos ângulos dos eixos ópticos tornam maior a definição, do que em objectos a longa distancia da visão. Os ângulos dos eixos ópticos são assim diferentes, de acordo com a localização do objecto em relação à posição do observador: “When an object is viewed at so Great a distance that the optic axes of both eyes are sensibly parallel when directed toward it, the perspective projections of it, seen by each eye separately, and the appearance to the two eyes is precisely the same as when the object is seen by one eye only” (Charles Wheatstone, "Contributions to the Physiology of Vision" in Crary, 1988: 27). Assim, a proximidade física traz a reconciliação da disparidade binocular ao fazer que duas visões passem a uma única.
Este principio pode ser descrito por um artista, quando pinta ou desenha determinado objecto de visão e depois repete a pintura ou desenho, alguns centímetros ao lado (poucos, os suficientes para simular a distância entre os olhos).  O  ideal é “quando as duas imagens são tiradas ao mesmo tempo com uma câmara dupla” (Holmes, 1859: 07). A figura 3 é um exemplo de Câmara dupla dos anos 80, que em primeira análise é um corpo com duas máquinas fotográficas com a capacidade de dispararem no mesmo instante.
Figura 3 – Exemplo de câmara dupla (anos 80)


Impõe-se uma pergunta: como fundir as duas imagens que por serem gémeas são chamadas de estereografias? Ou, como passar a ter apenas uma imagem?. Resposta, com um aumentador estrábico[10], que é um par de lentes com a capacidade de trocar os olhos por nós, “se for colocado de modo a que: com a sua metade direita nós vejamos a parte direita do diapositivo, e com a parte esquerda a parte esquerda do diapositivo, ele aproxima-as para o interior de modo a que elas caminhem juntas para formar uma única imagem” (Holmes, 1859: 08).
No caso do estereoscópio criado por Wheatstone[11], o observador colocava os olhos directamente em frente a dois espelhos planos e definidos a 90 graus um do outro. As imagens a ver eram colocadas em suportes no lado contrário ao observador. Existia uma completa separação espacial das duas imagens e da visão dos dois olhos, “made clear the atopic nature of the perceived stereoscopic image, the disjunction between experience and its cause” (Crary, 1988. 31).  A figura 4 descreve o estereoscópio criado por Wheatstone.

Figura 4 – O estereoscópio criado por Wheatstone


Poder-se-ão, assim, ver as formas e provocar uma sensibilidade única que a pintura não consegue passar ou transmitir: “os afiados esqueléticos braços de árvore ao fundo chegam até nós como se nos arranhassem os olhos” (Holmes, 1859: 08). À frente do observador estende-se uma realidade. A ilusão óptica cria uma ambiência extravagante e artificial que  transporta o observador para um outro espaço, para uma outra dimensão.
Hoje em dia as imagens estão cada vez mais perfeitas na capacidade de recriar experiências e de permitir a viajar no espaço e no tempo. Os perigos que acarretam algumas imagens são definidos por Anne McCauley na possibilidade confundir as habilidades humanas como um inferior trabalho de Deus[12]; no perigo de confundir o ícone com o seu desconhecido referente e no perigo do desejo de pensar que o ilusório é real.
Há vida na estereografia. Uma vida vista pelos movimentos de uma imagem para a outra e, também, pelas marcas deixadas. O realismo da estereoscopia cria uma maior percepção das diferenças: “the relation of the observer to the objects is no tone of identify but an experience of disjunct or divergent images” (Crary, 1988. 27). Da mesma forma que a natureza reflecte Deus, na estereoscopia observa-se um real que é  imaginação e ingenuidade. O objecto representado surge perto do observador e torna-se tangível. Há um lado didáctica, uma oportunidade para viver os tesouros – Uma arte democrática.  
A fotografia Estereoscópica é um dos patamares máximos para perceber o conflito entra a ânsia popular de emoções visuais e a condenação desses desejos. Há um apelo à sedução para com o outro lado dos objectos que encoraja a ociosidade.
Há uma percepção sensorial que não depende exclusivamente do mundo exterior, mas também do próprio corpo i.e. o funcionamento do aparelho óptico interfere na compreensão dos fenómenos por ausência de uma neutralidade óptica – o que é visto não depende exclusivamente dos objectos.
Existe relutância em colocar a estereoscopia como elemento da história da fotografia. Os argumentos são o facto das estereoscopias não reproduzirem com rigor a experiência perceptiva da estereoscopia nos livros sobre a história da fotografia e pela experiência imersiva ser mais apelativa para a história do cinema. Para além disso, há exigências necessárias para a exposição de estereografias em museus.
Até os grandes defensores da estereoscopia lhe apontam falhas. Por exemplo, Oliver Wendell Holmes[13] aponta a  falta de cor e movimento, acrescentando, também, uma capacidade de hipnotismo aludindo-se a comparações com algumas experiências desenvolvidas por  James Braid[14]. A fixação do olhar com capacidade de levar à perda do racional do observador.
Apesar de alguns considerarem arte, estas imagens foram classificadas como entretenimento (cf. nota de rodapé 6) e alvo de vários  ataques, até por parte de governos: “mindless entertainment, dangerous distractions from work and political action, and breeders of false consciousness and unrealistic social aspirations” (McCauley, 2000: 27).
A visualização destas imagens estava associada à ideia de voyeur, por necessitar de interacção com o aparelho. Um espreitar e um ver sem ser visto que permitia entrar nos espaços sem entrar fisicamente. Por parte do observador, podiam ser sentidas presenças que não existiam verdadeiramente e que permitiam experiências sem  possibilidade de qualquer tipo de denúncia.
O potencial erótico destas imagens criou um espaço de desejo no observador. O efeito de realidade que estas imagens transmitiam era acompanhado por uma obscenidade entre o observador e o objecto. A realidade das imagens provocavam uma excitação sexual, um desejo criado pela sensação de realidade.
A fotografia derrotou a estereoscopia. As instituições científicas e os poderes públicos exigiam imagens com uma percepção mais estável sobre a realidade social. A estereoscopia não se conseguiu impor. A fotografia ganhou espaço por que recria e perpetua.
Bibliografia:
Arnheim, Rudolf. Arte e percepção visual (1960). [S.l.]: Pioneira, 2005. p. 236
CRARY, Jonathan. (1988) “Techniques of the Observer”, Jstor, Vol. 45, pp. 3-35.
Holmes, Oliver Wendell (1859). “A estereoscopia a estereografia” in Revista de Comunicação e Linguagens nº39 Fotografia(s), Lisboa, Relógio d’Água, 2008
McCauley, Anne (2000). “Realism and its detractors.” In Paris in 3D. From Stereoscopy to Virtual Reality 1850-2000, edited by Françoise Reynaud, Catherine Tambrun and KIM Timby, 23-29. Paris: Musée Carnavalet, Museum of the History of Paris, 2000.




[1] Um ano depois de Daguèrre ter dado a conhecer a sua invenção e de Talbot ter apresentado à Royal Society o método de obter imagens em papel pela acção da luz.
[2] Ver explicação na continuação do presente texto.
[3] Ilusão óptica – São as ilusões que ‘enganam’ o sistema visual humano e que fazem o observador ver algo não presente ou erróneo. Estas ilusões podem ser de carácter cognitivo ou fisiológico.
[4] A cor é a forma como o olho interpreta a reemissão da luz imanada de um objecto. Esta reemissão é emitida por uma fonte luminosa por meio de ondas electromagnéticas.
[5] Fotografias em daguerreótipos, vidro e papel.
[6] Nestas exposições a estereoscopia estava no mesmo patamar que o panorama e o peep-show. Puro entretenimento.
[7] Filósofo naturalista irlandês que nasceu em Dublin, em 1656.
[8] Outros autores respondiam na mesma direcção de pensamento: Locke, Berkeley, Diderot, Reid e Condillac.
[9] Distância interpupilar.
[10] Artesanalmente é cortar ao meio uma lente convexa, alisar as curvas até ficarem direitas e juntá-las.
[11] Na comparação, os modelos posteriores faziam o observador acreditar que estava a olhar para a frente – para algo que se exteriorizava. O modelo de Wheatstone não disfarçava a experiência.
[12] Por dificuldade na tradução, apresenta-se o original em inglês: “the danger of mistaking inferior human craftsmanship for the work of God”.
[13] É um entusiasta da estereografia. Foi professor na escola médica de Harvard, escritor, fotografo amador e dono de uma espectacular colecção de estereografias. Nasceu em Cambridge, em 1809.
[14] Médico cirurgião escocês nascido em 1795. Foi um dos pioneiros cientistas modernos a trabalhar com o estado hipnótico e com a sua indução. É considerado o iniciador da hipnose científica.

1 comentário:

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